top of page
Foto do escritorLaura Marquez

Pequenos atos heróicos

Atualizado: 10 de dez. de 2019


Ato 1.

Não procure grandes sentidos para a vida, corre o risco de você se decepcionar. Nesse caminhar de incertezas pequenos gestos, pequenos atos é que nos constituem, nos confortam e fazem com que temporariamente a gente se entenda ou se explique. Eu acredito que há pequenos, quase insignificantes atos, que são fundantes do nosso modo de estar no mundo. Tudo é mutatis mutandis nesse viver, mas tem coisas, valores que são importantes mantermos. Do contrário ficamos como uma biruta ou mais perdido que cego em tiroteio nessa vastidão pós-moderna, onde as mentiras, a fogueira de vaidades, a canalhice e oportunismos imperam. No Brasil o que tenho visto é antigos comunistas virando liberais e tradicionais liberais...continuando uns liberais mesmo ou pior.


Tenho grande admiração por aqueles que mantém na sua alma certa rebeldia, ou indignação com as injustiças, apesar do tempo e o peso da idade quererem lhes dobrar os joelhos. A primeira rebeldia a gente nunca esquece. Assim como o pequeno gesto heroico que pode a vir a ser um indicativo de que lado da “trincheira” você estará no futuro.


Estudava num colégio religioso. A ditadura militar estava em pleno auge e se fazia presente em todos os lugares e nas escolas era o lugar privilegiado onde ela atuava pra formar, adestrar o patriota do futuro. Vivíamos sob dois autoritarismos, os valores de um colégio de padres mais o do regime. Mas, a arte da sobrevivência psicológica e também social é a rebeldia. Os portões do colégio se fechavam cinco minutos antes do toque da campainha, quando todos se perfilavam no pátio pra rezar e cantar o hino nacional. Era nesse momento que um dos padres vinha verificar se o fardamento estava completo. Quando atrasados por causa de um minuto a mais de sono, tínhamos que pular o muro e descer pelas mangueiras do campo de futebol. As vezes esquecíamos de botar as meias pretas, que eram rigidamente fiscalizadas, mas sempre aparecia um amigo solidário que nos emprestava, de modo que cada um ficava com um dos pares e na hora da revista mostrávamos o pé com a meia preta. Funcionou a estratégia até o dia em que alguém caguetou. Do meio das fileiras escutou-se o grito “olha o outro pé!”

A ditadura tinha seus sucessos educacionais, pequenos canalhas que viriam a serem grandes canalhas. Até hoje não sei o quanto alguém se torna uma pessoa melhor e mais produtiva por usar ou não meias pretas. Acho que era fetiche dos padres.

Meu pequeno grande gesto de rebeldia aconteceu num dia em que cheguei atrasado. Era meninote ainda muito temeroso das tiranias e disparates de alguns professores. Havia uma professora que tinha a função de coordenação dos outros professores e as vezes de bedel. Já tinha tido aulas particulares com ela e convivido com o terror autoritário e cruel que ela impunha aos seus alunos. O uso da palmatória na arguição da tabuada era contumaz. Consegui convencer com muitas súplicas o porteiro a me deixar entrar, pois teria prova de matemática. Ele só me deixou entrar porque era muito amigo de meu pai e era dia de provas. Os alunos tinham acabado de entrar nas salas, pois já tinha acontecido as rezas e o canto do hino nacional. Queria correr em direção a sala. Mas não era prudente. Pé ante pé ia furtivo no corredor das salas de aula eu desejava estar invisível ou ser o homem aranha para sorrateiramente entrar sem ser visto por nenhum padre ou Dona Lindalva. Se eu não tinha os poderes da invisibilidade e nem os do homem aranha, ela tinha os olhos do grande irmão, ouvidos de cães mutantes, que tudo via, farejava igual o gigante do pé de feijão, tudo escutava, os passos mais tímidos de um garoto amedrontado.

Escutei o tilintar do sininho que ela usava. A voz imperiosa cortou o corredor “Mocinho, tu estas atrasado, para onde tu pensas que irás.” Ela gostava de conjugar com o pronome Tu.

O frio me subiu a barriga. Parei estático quase sem olhar para ela. Balbuciei ainda trêmulo que iria fazer prova de matemática. Ela deu um sorriso irônico e me ordenou que fosse até a sala dela. Ao chegar ela me mandou sentar e me disse que eu não iria fazer a prova, pois tinha chegado a-tra-sa-do. Sublinhando cada sílaba. Timidamente argumentei “que ainda não tinha começado a aula, que somente tinha perdido a reza e que era importante para mim fazer aquela prova. Eu precisava fazer aquela prova”. A minha declaração de necessidade aumentava o prazer e o poder dela. Ela irredutível disse-me “que eu não faria a prova e que a oração e o hino nacional também eram importantes. E que se eu não achava importante chegar na hora, para orar e cantar o hino nacional, que pessoa eu seria no futuro? Você é um nada!” Não é que no futuro eu não seria nada. Eu já era um nada.


Ergo os olhos do sapato preto dela para os seus olhos irônicos. Algo aconteceu naquele dia. Talvez os hormônios da pré-adolescência, o meu sentimento de injustiça, minha necessidade de fazer aquela prova. Meus olhos se encheram de lágrimas, mas não queria chorar naquele momento, na frente dela. Tentando conter as lagrimas fui ficando com as mãos frias, sentia o sangue me fugir e a boca seca. Era um sentimento novo. Quase uma vertigem. Não conhecia, nunca havia sentido. Entre a ira, a fuga, o medo, o respeito a ordem, a desobediência a ordem injusta, a rebeldia, entre o nada e o absoluto. O que era certo o que era errado? O medo, a coragem se digladiando dentro de meu coração menino. A atitude dela estava me doendo mais do que umas dez palmatoadas. E olhe que uma palmatoria é um instrumento de tortura cruel.

Quase num sussurro digo “Eu vou embora, se não vou fazer a prova eu vou embora pra minha casa”. Ela ouviu, mas fez que não. Repeti em voz alta. E desta vez as palavras saíram de dentro do meu peito num arfar. Ela se pôs de pé a porta da sala, mas viu nos meus olhos, na minha determinação que algo tinha acontecido e que não iria me impedir de ir embora.

Num jogo sutil de gestos eu percebo que ela estava surpresa e sem ação. Eu não estava mais com medo. Ela também não estava com medo, estava atordoada com o tom da voz da rebeldia, de liberdade e num gesto nervoso, com um olhar acuado, querendo esconder o espanto, abanou as mãos me enxotando para fora da sala dizendo “vá, vá fazer a prova”. Eu saí Jubileu tal qual o homenino do poema Jaguadarte.

Daquele dia em diante nunca mais tive medo dela e nem de pessoas autoritárias e cruéis. A vida seguiu e pessoas como Dona Lindalva continuam a proliferar nos mais diversos ambiente. E muitas nem sabem conjugar o verbo na segunda pessoa, mas adoram usar palmatória e pequenos poderes.

Tive que viver outras rebeldias e pequenas revoluções cotidianas, enfrentar palmatoadas verbais, encarar pequenos e grandes tiranos, que em nome da pátria, instituição ou religião queriam e querem nos dobrar a espinha numa obediência cega e estúpida.

E mais...não uso meias pretas e não gosto de fardas.


João Bosco Sousa


193 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page